

Em pleno centro de Roma, entre a Praça Veneza e o Rio Tibre, está localizado o gueto judeu, um dos mais antigos do mundo, onde, em 1555, por ordem do Papa Paulo IV, foram obrigados a morar todos os judeus romanos, com restrições em suas atividades sociais e comerciais. A cozinha hebraica, componente fundamental da cozinha romana, tem suas origens nos hábitos dos judeus do gueto, que levavam uma vida pobre e que desfrutavam ao máximo dos ingredientes simples que tinham à disposição e das sobras alimentares, compensando, com a criatividade e a arte de sobreviver, as dificuldades de abastecimento causadas pela reclusão forçada. As sobras do mercado do peixe de Roma eram jogadas nas imediações da Igreja de S’Antangelo in Pescheria, e eram juntadas pelas mulheres judias e cozidas em água e sal. Nasceu, assim, o caldo de peixe, prato pobre, mas muito saboroso, ainda servido nos restaurantes típicos de Roma.
Próximo do gueto hebraico, no outro lado do Tibre, tem o bairro de Trastévere, o centro do centro do mundo … leia mais
Da cozinha hebraica, a romana importa o uso dos miúdos dos animais (as frattaglie), carne comumente rejeitada. Língua, baço, cérebro, fígado, intestinos, tripas e rins constituem o chamado “quinto quarto” da carne bovina, ou seja, as partes rejeitadas dos animais que sobram depois de cortados os dois dianteiros e os dois traseiros. É incrível e paradoxal como os judeus deixaram seus sinais exatamente numa cidade como Roma, símbolo da cristandade e da religião católica, seja nas atividades comerciais que, com o tempo, levaram o povo hebreu da pobreza absoluta a uma situação de bem-estar, seja na cozinha típica romana, da qual os Papas e o clero eram muito ávidos (há um ditado romano que diz: “Chi se vò imparà a magnà, da li preti deve annà” , ou “Quem quiser aprender a comer, deve ir com os padres”). Na realidade, isto decorreu grandemente da contrarreforma realizada pela Igreja, que impôs aos nobres romanos e ao clero a chamada ao luxo e ao retorno à espiritualidade e a uma vida sóbria, com o consequente empobrecimento da cozinha.
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Cozinha pobre certamente, mas de qualidade! Assim como a corte portuguesa no Brasil acolheu em seus menus a feijoada, prato pobre inventado pelos escravos negros com os restos da carne, assim a igreja católica e a nobreza romana adquiriram as delícias da cozinha romana pobre; muda o continente, mas o resultado é o mesmo; há os que criam e existem os que… comem! Vocês já viram um Papa ou um Cardeal magro ou desnutrido? Eu, em meus 50 anos vividos em Roma, nunca.
Voltemos a argumentos mais apetitosos, vejamos alguns pratos típicos da cozinha hebraico-romana: carciofi alla giudia (alcachofras à judia), prato típico que era degustado pelos judeus romanos depois do período de jejum do Yom Kippur; era constituído de alcachofras romanas, de enormes dimensões relativamente às que são encontradas no Brasil, imersas no azeite de oliva e fritas até tornarem-se crocantes; fiori di zucca fritti (flores de abobrinhas fritas), recheadas com queijo mozzarella e anchovas, cobertos por uma massa de farinha, ovos, cerveja e limão; le coppiette, formadas por tiras de carne de porco ou cavalo, cobertas com pimenta dedo de moça, sal e outras especiarias, deixadas secar por dois meses; atualmente são encontradas junto a vendedores ambulantes na área dos chamados Castelos Romanos, nas colinas ao sul da cidade; as copiette originariamente eram de carne bovina, sendo o cavalo e o porco proibidos na cozinha hebraica, e eram consumidas tradicionalmente durante o Ano Novo sefardita, ou seja, os judeus da área mediterrânea.
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Dentre os pratos romanos que derivam da cozinha hebraica com a utilização de miúdos de animais, citamos: rigatoni con la pajata – uma delícia, constituída de massa com molho de tomate e tripas de bezerro ainda cheias de leite coalhado, apenas bebido; coda alla vaccinara – quem pensa que a rabada seja um prato brasileiro, erra redondamente! Há séculos esse prato era feito em Roma, da mesma forma que no Brasil; coratella com carciofi – miúdos de cordeiro, cozidos numa frigideira com alcachofras picadas, cebola, folha de louro e vinho branco; trippa alla romana, dobradinha com massa de tomate, menta romana e queijo parmesão ralado; supplì al telefono – excepcional antepasto, costituído por bolinhos de arroz, cuja receita original previa o recheio de miúdos de frango, atualmente substituído pelo de carne bovina moída.
A cozinha romana não é somente isso, mas é uma cozinha muito variada que contém, em cada prato, histórias e tradições de tempos distantes.
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